Revisitando a Mata Atlântica

Itororó IV, 2019, grafite sobre papel, 150x110cm.

O “fantasma da repetição” assombra alguns de nós, artistas. Tudo começa com um trabalho que dá certo e alcança um reconhecimento, e surge o impulso de voltar a explorar os mesmos recursos, seguindo a esteira da afirmação já trilhada. E então vem a ansiedade e o receio de isso engessar a criatividade numa “fórmula” de sucesso fácil. É natural que as pessoas demandem uma certa reiteração de resultados bem urdidos, que queiram, ao menos um pouco, mais do mesmo. Mas é decepcionante quando o mesmo público já não espera do artista nada além desse “mais do mesmo”.

Arte não é somente o poder de produzir empatia – embora isso seja importante – mas também é a capacidade de fazer-nos ver algo de um novo ângulo, de uma maneira não convencional ou até mesmo inesperada. E isso é, antes de tudo, a capacidade do artista de dialogar honestamente consigo mesmo.

Para mim, procurar ver de um novo ângulo muitas vezes significa não procurar nada: é esvaziar a mente e olhar atentamente, deixar o mundo se apresentar à visão com as suas surpresas inesperadas e sugestões imprevisíveis. Não estou “caçando” o melhor ângulo, a melhor composição, mas estou ali sempre atento e alerta para aquilo que pode me surpreender. E em cima desse momento inesperado eu construo o trabalho. Isso passa pelo entendimento do que é, para mim, essa surpresa: uma luz, o equilíbrio excepcional de tonalidades? A evocação de uma memória? A definição sensível de um ambiente? A correlação que o mundo estabeleceu com o repertório da minha cultura? Ou simplesmente o momento em que você compreende o que, e de que maneira, você tem visto o mundo na última meia hora? Tudo isso está no mundo, não está em mim. O que não é espontâneo é a construção posterior que vou realizar desse ponto de partida. E aí o trabalho pode ir para qualquer lado. Por isso faço trabalhos serializados: vou me aproximando desse momento fundador de vários ângulos… como um gato que explora com o olhar e com seu deslocamento cuidadoso algo que lhe é estranho.

Ocorre que arte não é também somente a originalidade com que se vê o mundo e com a qual se constrói uma relação com o mundo: arte também é – e muito – a maneira, o modo, como você constrói isso. E isso é trabalho de ateliê, a fase da “transpiração” que Picasso referia, um longo, interminável processo de aprendizado de expressão. Envolve conhecimento e inteligência técnica, capacidade de adensar o alcance da expressividade, e de produzir um vocabulário de maior variedade e complexidade.

Ou seja: o que está em jogo é ver o espaço vivencial como oportunidade, não como coisa dada. E oportunidade é sempre comunicação e diálogo. Não estou falando só entre pessoas. Ao se refazer como um sujeito dialogante, o artista relativiza a importância da sua existência no mundo e ao mesmo tempo entende o imenso privilégio de poder se comunicar com o mundo como um organismo vivo. (E quando digo “da existência” quero dizer das suas certezas.)

O mundo como oportunidade de diálogo. Essa foi a grande formação que eu tive percorrendo lugares remotos das florestas brasileiras.

Jureia interior (primeira versão), 1987, grafite sobre papel, 70x100cm.

Enfim, se nesse trabalho de ateliê o artista começa a se repetir, ele se engessa. A liberdade consiste em empurrar a capacidade de expressão sempre a um novo limite e sair da zona de conforto. Reconstruir temáticas do início do meu percurso foi justamente aceitar esse desafio: “você é capaz de dialogar comigo de uma outra maneira? Ou de um modo mais claro”? Essa era a pergunta que me fazia a memória das paisagens da mata atlântica que conheci havia 30, 35 anos. “Sim. Eu posso. Eu vou tentar. Hoje sou uma pessoa mais flexível. Hoje sou uma pessoa com um diálogo mais nuançado. Hoje procuro ver mais nuance no que você me diz, tenho menos certezas. Mas tenho a mesma curiosidade e a mesma alegria”. É a minha resposta possível.

Francisco Faria

2021-05-02